Crianças de papel

domingo, 9 de maio de 2010 14:03 Postado por Hemilin Alves

Arroz, feijão, carne, cenoura e beterraba são repetidas, no mínimo duas vezes, por quase 120 crianças da creche Mont Serrat no almoço. Única ou principal refeição do dia para muitas delas. Nesta hora não se ouve mais do que o barulho das pequenas colheres tocando os pratos de alumínio. O que as professoras servem as crianças comem, sem preferências ou reclamações. E repetem.

No berçário, almoça Igor, que completou um ano no dia 3 de novembro. A casa de duas peças onde morava com a mãe, a tia e mais duas crianças pegou fogo há três meses. Igor não tem mais casa. A família se reveza na casa de parentes e conhecidos do morro. Morro igual a qualquer outro, com miséria, muitas crianças e com um dono, que para os moradores, parece ser melhor não saber quem é.

Raqueli também tem um ano e a casa onde mora com mais quatro pessoas não tem banheiro. Entre bonecas e brinquedos da creche, a pequena menina escolhe uma caixa de plástico para brincar e não sai de dentro dela, nem para almoçar. As professoras acreditam que a menina se sente protegida dentro da caixa. Protegida das outras crianças, protegida do mundo.

Ariel e sua irmã Elisandra provavelmente serão dados pela mãe quando completarem sete anos. Mãe que já deu sete filhos dos nove que teve, todos crescidos, quando não tinham mais idade para frequentar a creche. Segundo a Irmã Edite, diretora da creche, uma cirurgia de laqueadura foi marcada para a mãe de Ariel, mas ela recusou. Perguntada pelo motivo de não criar os filhos, Angelita sorri e revela que pretende ainda parir mais três crianças, para receber mais auxílio do estado. Crianças que assim como Ariel e Elisandra serão dadas ao completarem sete anos.

Na voz da diretora, as histórias se repetem. E não há comoção no que é rotina. “A gente sabe que têm casos de pais e mães viciados em drogas, muitas das crianças já perderam o pai, muitas têm a creche como referência de segurança. A gente tenta se aproximar das famílias, mas nem sempre eles querem ajuda”, explicou Edite.

A creche existe há 30 anos no Morro da Caixa, em Florianópolis. É conveniada pela Secretaria de Educação e apoiada por freiras da Congregação das Irmãs da Divina Providência.

Para ser aluno é preciso que os pais apresentem certidão de nascimento e comprovante das vacinas. Se a criança precisar ficar no período integral, é exigida também a comprovação de trabalho dos pais. A irmã Edite conta que no fim de 2008, um pai em protesto contra a exigência de comprovação de trabalho lançou um rojão dentro da creche. Apesar do susto com a explosão, ninguém se feriu. “Com exceção de alguns episódios, os moradores respeitam muito a creche”, afirmou a diretora.

Localizada no Morro da Caixa, a creche possui 365 metros quadrados e atende crianças de quatro meses a seis anos. Refeitório, pátio, pracinha, brinquedos, comida e banheiro, o que não é comum na casa dessas crianças. São cinco turmas, cinco professoras e cinco auxiliares. Na sala dos “maiores”, aulas de inglês são ministradas. Os alunos, sem saber que são observados, não tiram os olhos do professor.

Uma vez ao mês tem festa na creche, é o aniversário coletivo, para que todos comemorem com os aniversariantes do mês o que não seria comemorado fora dali. Dentro da creche as crianças vivem uma realidade à parte, com prazo para terminar. No máximo às 17h30 o que parece um sonho, acaba. Igor voltará para casa que não tem. Raqueli não encontrará banheiro. E muitos não encontrarão uma família.

O projeto

Ao perceber a realidade em que estão inseridas as crianças da creche, a professora Vera Maria de Araújo iniciou o projeto “Brincando e Aprendendo” para resgatar a autoestima já perdida daqueles que ainda nem chegaram aos três anos. “Essas crianças precisam recuperar a autoestima, elas sabem que terão que voltar para sua realidade quando saírem da creche, precisam saber como são especiais, não importa como e onde vivem”, explica a professora.

Cada criança foi desenhada em papel pardo, que somado a fotos dos rostos e as roupas preferidas de cada um, construíram uma nova criança, de papel. “Réplicas” que ficam coladas nas paredes da sala de aula. Quando recebem visitantes ou até mesmo um membro da família para conhecer o projeto, as crianças disputam atenção para apresentar suas cópias, sempre sorrindo. “Olha como eu sou bonito”, ressalta Matheus, de três anos, apontando para o seu outro eu.

Matheus teve meningite com três meses de idade e, como sequela, passou a apresentar sintomas de surdez. “Ele só ficava gritando e apontava quando queria alguma coisa”, conta a bisavó, Marlene Bittencourt, que cuida de Matheus no período em que ele fica fora da creche.

Depois que começou a participar do projeto “Brincando e Aprendendo”, Matheus conseguiu desenvolver a fala. Hoje, consegue se comunicar com a família e com os amigos da creche. “O projeto foi fundamental na melhora do Matheus, não sei se ele aprenderia a falar sem esta ajuda”, afirma a bisavó.

Esta semana, Matheus não foi à creche e não tem data para voltar. Mais uma vez está com meningite. De repouso em casa, brinca com uma pipa produzida com o plástico de uma sacola de supermercado feita pelo “tio Zé”. O padrinho que está desempregado vigia Matheus o dia inteiro. Por causa da meningite, Matheus tem que ficar longe do sol. Falando baixo e em uma linguagem que só os mais próximos entendem, Matheus chora: “me leva na creche, quero ver a tia Vera Maria”.

Pedro tem dois anos e como não vê mais a mãe por problemas familiares, não brinca e não quer falar, mas ao entrar na sala senta embaixo do “Pedro de papel”, e quando as professoras se aproximam ele as abraça. “O Pedro é muito carente, aos poucos a professora está conseguindo aproximar ele dos coleguinhas e está fazendo ele conversar, ele não chora mais, está melhor do que antes”, conta a diretora.

São dezenas de crianças que vivem histórias parecidas. Crianças que desde muito cedo precisam aprender a enfrentar dificuldades de gente grande.

Para encontrar a melhor forma de ajudar as crianças, a professora visitou a casa de cada um dos seus 23 alunos.

“Chegando ao morro não foi difícil entender a condição de pobreza e a falta de acesso mínimo à higiene a que estão acostumados, os adultos não percebem o quanto isso atinge as crianças”, afirmou Vera, explicando que na creche muitas crianças por não ter, não querem sair do banheiro da creche e se divertem quando conseguem apertar a descarga seguidas vezes.

“Aqui na creche, cada criança tem uma história difícil e problemas na família, receber elas tristes e constrangidas é bastante comum. Mas com esse trabalho, a professora conseguiu fazer com que as crianças começassem a sonhar”, conta a Irmã Edite.

De acordo com a professora Vera, uma nova imagem foi construída a partir deste trabalho, e seria o começo, já que o principal objetivo é aproximar as famílias da vida das crianças. “Têm mães que nunca compareciam na creche por medo de ouvir as professoras”, afirmou Vera, explicando que já percebe uma aproximação maior das famílias e sente as crianças mais confiantes.

“Esse projeto que parece tão simples, traz uma melhora muito significativa no convívio das crianças, as famílias precisam reconhecer que esse trabalho é o início, o resgate da autoestima precisa ser seguido em casa”, afirma Vera, explicando que sonha em ver o projeto ser repetido em outras creches e escolas.

A professora acredita que com um lugar fixo na parede, as crianças se sentem especiais e seguras, percebendo que cada um tem seu espaço. A prova de que o projeto funciona, segundo a professora, é perceber um novo brilho no olhar das crianças que revela a esperança até então esquecida.

Para a professora Vera, o trabalho na creche começou no início deste ano. Contratada pela prefeitura, não escolheu a Creche Mont Serrat para trabalhar, foi o que sobrou, o que ninguém quis. “Eu não queria essa creche também, mas acabei aceitando e hoje tenho certeza que não poderia ser outra, as crianças precisavam de mim e eu delas”, revelou Vera.

As crianças já começaram a pintar desenhos sobre o natal. Natal este, que por enquanto só os alunos maiores terão, por patrocínio de um mercado da cidade. Já o maternal e o berçário estão à espera de alguém que ache importante o natal para eles. A creche aceita brinquedos, roupas, alimentos, visitas e tudo o que possa trazer uma vida melhor para essas crianças.

E como nada parece ser fácil na vida destes pequenos, a professora que resgata a autoestima das crianças e que tanto melhorou a vida dos seus alunos, se confirmar sua aprovação em um concurso, não será mais professora da Creche Mont Serrat e deixará para trás suas crianças. O que talvez não seja problema para quem parece ter nascido para lutar. As crianças da creche Mont Serrat, tão únicas e tão iguais, mostram para quem quiser ver, um recorte da realidade. Realidade de um morro inteiro, de todos os morros da cidade, do país. Crianças que dificilmente terão muitas escolhas ao sair da creche, aos sete anos. Crianças com limite para sonhar.

Pequenos que parecem preferir ser aquelas que tanto admiram todos os dias na creche: as crianças de papel.


Texto: Cibelly Favero e Hemilin Alves

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