Estátua também fala?

quarta-feira, 21 de abril de 2010 11:45 Postado por Hemilin Alves

Carregando uma mochila com as cores oficiais da Jamaica em uma mão e um banco de madeira na outra. Foi assim que Jonas veio ao meu encontro. No primeiro momento não o reconheci. Mas o ar gentil e divertido acordaram o meu hipocampo – parte do cérebro que memoriza fisionomias e que nem sempre funciona como deveria. A bermuda e os cabelos soltos na altura dos ombros também ajudaram a aumentar a distância entre o personagem que conheci outro dia na Rua Felipe Schmidt e o paulista de 23 anos que nasceu em Cruzeiro, cidade do interior de São Paulo. Mas a transformação não demoraria muito. Em menos de uma hora, Jonas seria outro. Sem os longos cabelos, sem movimentos, quase sem respiração.

A tinta preta vai primeiro, cobrindo toda a pele, apagando aos poucos aquele Jonas de outrora. Antes da tinta, um pouco de talco. Ajuda a fixar melhor a maquiagem que deverá durar até o final do dia. A tinta prata é aplicada em regiões estratégicas e dá ao corpo pequeno força e rigidez. Os acessórios vão sendo colocados com atenção. Atenção de artista que quer um espetáculo bem feito. O lenço, o tapa olho, o gancho – é, igual aquele do Capitão Gancho –, a espada e a arma com design de outro século, dão o acabamento final e transformam Jonas num verdadeiro pirata. O pirata nasceu essa semana. Ao todo são seis personagens. E cada personagem ganha uma atenção especial nos detalhes. Atenção de artista. “O legal é poder criar novos personagens, as pessoas gostam de ver coisas novas”, conta Jonas com entusiasmo. Entusiasmo que dá pra sentir na voz, nos gestos, na alma.

São dez horas. A chuva começa a cair. A tinta não é à prova d’água e nem poderia. Afinal, no fim do dia, Jonas volta a ser o Jonas que mora na Tapera e percorre uma hora de ônibus para no dia seguinte voltar com mais um personagem.

Quando chove é um dia de trabalho perdido. Todo o processo de caracterização é em vão. Esperando o sol voltar e entre um cigarro e um suco de laranja, o pirata prateado lembra da família que não vê há dois anos. “A minha família ainda mora em São Paulo, então fica complicado ir visitar, é muito caro”. Jonas saiu de casa aos 13 anos para morar com uma tia na capital paulista. Já no colégio despertou o interesse pelas artes cênicas. Com um grupo de amigos, fazia sombras pela cidade. Quando completou 18 anos mudou-se para Curitiba. Trabalhou em uma fábrica de guardassol, mas a rotina de trabalho e mais especificamente o fato de ter um patrão, o fizeram deixar a estabilidade do emprego formal. “Nunca gostei de trabalhar para os outros, prefiro fazer o meu próprio horário”. E foi na mesma Curitiba do emprego fixo que Jonas descobriu o que realmente queria ser quando crescer.

A chuva parou. O sol não voltou, mas os dias nublados também rendem uma longa jornada. Cruzamos as ruas em direção ao posto de trabalho. A transformação deu certo. O pirata prateado atrai olhares da multidão apressada. Alguns até arriscam comentários. Mas Jonas conquista mesmo são as crianças. Medo ou admiração. Não importa. Elas são o público principal e a razão de o pacote de flores e o pacote de balas serem itens fundamentais no figurino de todos os personagens. “Eu sempre dou uma florzinha para as meninas e uma bala para os meninos”.
Quando chega ao local onde vai passar o resto do dia, Jonas procura encontrar a melhor posição, com maior visibilidade. É preciso também posicionar bem o banco, pois é nele que ele terá que se equilibrar por longas horas. Alguns truques, como as aulas de yoga, também ajudam. “Aprendi com a yoga a controlar a respiração e agora consigo me equilibrar melhor sem me movimentar”, conta o pirata.

Tudo pronto. Hora do show. O pirata prateado sobe no banco com garra e determinação, disposto a conquistar olhares, notas e moedas. Jonas consegue arrecadar de R$ 50 à R$ 80 por dia. “Mas às vezes volto pra casa no prejuízo”, conta. Parte desse dinheiro paga o aluguel da casa que ele divide há seis meses com amigos. Festas e eventos particulares também rendem um bom lucro. São R$ 200 por quatro horas.

E então tudo para. É como se todo o corpo se petrificasse. Até a respiração parece inexistente. Jonas é agora uma estátua. Estátua viva. Mas se eu não tivesse o visto falar, teria dúvidas se há mesmo vida ali. “Deixo a mente voar, tento me concentrar em outras coisas”, revela. Nos primeiros dias como estátua surgiram algumas dificuldades. As brincadeiras do público que parava para observar e a falta de técnica o faziam perder o equilíbrio. E aí começava tudo outra vez, em outro lugar. “A estátua perde credibilidade se faz algum movimento. O pessoal gosta de ver bem feito”.

Mas o tempo, os empurrões, as cócegas, os cadarços amarrados, e alguns tapas naquele local abaixo das costas – é, lá mesmo –, trouxeram experiência. Hoje, Jonas dá algumas espiadas e só sai da posição quando faz um gesto de agradecimento para os que fazem depósitos no seu baú de economias. E balas para os meninos, flores para as meninas.

Pausa para o almoço. Algumas pausas para o banheiro. Notas. Moedas. Balas. Flores. Mais um dia de estátua. E apesar do cansaço e das dores nas pernas, a satisfação de ter conseguido alguns olhares e sorrisos toma conta de Jonas. “Adoro interagir com as pessoas, fico feliz quando as pessoas param pra olhar”. E assim, com a sensação de dever cumprido, o pirata se despede. Mais uma hora até a Tapera, ainda de estátua, de pitara prateado. Os vizinhos já o reconhecem e pelas crianças do bairro ele é chamado de: a estátua.

E é no banho que a estátua se despede, quando a tinta escorre pelo ralo. Bem, nem toda a tinta. Por isso, Jonas é o responsável pela limpeza do banheiro da casa onde mora. “O banheiro fica todo preto, dá um trabalhão limpar”. No entanto, isso não o desanima. No dia seguinte a tinta cobre o seu corpo mais uma vez.

Jonas volta a ser o Jonas de cabelos longos. Que quer morar em Florianópolis para ser estátua e para ficar sempre perto da namorada. Que vai visitar a mãe no final do mês. E que decidiu virar estátua, lá em Curitiba, por amor a arte. “Gosto de fazer o que faço. Sou feliz sendo estátua”. É, estátua também fala.

0 Response to "Estátua também fala?"